O BRASILEIRO NÃO GOSTA DE LER 15 de outubro, 2020

Professora Drª. e escritora Simone Paulino

“Brasileiro não gosta de ler”: quem nunca ouviu essa frase ou não morou no Brasil ou simplesmente ignorou essa sentença que, de certo já passou pelos seus olhos ou ouvidos em algum momento da sua vida.

De fato, não temos no nosso país uma cultura literária, mas não podemos jogar para massa a responsabilidade de “não gostar de ler”. Ora, isso tudo começa na infância através do exemplo: a criança que vê os pais sempre em contato com livros, com os olhos presos numa leitura ou que ouve os tutores contar histórias, vê os livros como algo a ser apreciado.

No entanto, não vamos nos comparar a países desenvolvidos ou cidades europeias onde se mostra a foto de pessoas num metrô com a cara enfiada em alguma leitura. Temos que pensar no Brasil e em sua formação para desconstruirmos essa falácia de que “Brasileiro não gosta de ler”.

Você pode contra-argumentar e questionar-me como vai o mercado livreiro brasileiro e como eu posso dizer que é uma falácia essa frase tão popular se basta olhar num ônibus que são raros aqueles passageiros que estão lendo. Posso responder com simplicidade que a maior parte dos brasileiros não foi acostumada à leitura.

Alguns parágrafos antes eu afirmei que a criança aprende pelo exemplo, lembra disso? Agora vamos imaginar um país que viveu um processo de quase 400 anos de escravidão e que, após a abolição, essa população escravizada foi libertada à própria sorte, sem bens ou qualquer tipo de política pública. Esses ex-escravizados, em sua maioria, nunca tinham pegado num livro na vida e nem lhes fora permitido aprender a ler. Afinal, leitura é conhecimento e conhecimento é poder. A educação a eles era vetada por lei.

Agora façamos um exercício de imaginação e vamos pensar como estaria essa população cerca de cem anos depois. Seria leviano pensarmos que, sem qualquer amparo político-social, a população egressa da escravidão teria oportunidade igual a qualquer homem ou mulher branco durante essa passagem de tempo. Não precisa de criatividade e inteligência para olharmos que a marca de quase 400 anos de escravidão continuou a segregar essa sociedade, inclusive, culturalmente.

A educação superior, por exemplo, era um sonho proibido aos mais pobres – em sua maioria oriundos de famílias de ex-escravizados. Enquanto os filhos dos descendentes de donos de engenho e da burguesia tinham uma educação plena.

Além disso, a leitura nas casas com maior poder aquisitivo e o convívio com os livros era natural; o filho do negro, a criança mestiça, pobre, descendente de ex-escravizados, via os avós, pais trabalharem naquilo que parecia subalterno demais aos brancos. Não era preciso ler para realizar aquele tipo de serviço que em muito se assemelhava ao que antes era desempenhado pelos escravizados.

Ler parecia perda de tempo se era no trabalho com a limpeza, estivador, cuidadora do filho da patroa como uma “ama-de-leite” que estavam a oportunidade de emprego para aquela população. E os livros? O pagamento por esses serviços, até hoje, são pouco dignos e a remuneração não é equivalente a força de trabalho exercida. Ora, não se come folhas de papel, um Machado de Assis enche a mente, mas não a barriga. “Ler ou comer? Eis a questão.” Logo, entre livros e comida não era uma escolha difícil.

Soma-se a isso, livros proibidos durante a ditatura militar que vigorou de 1964 até 1985. A questão não era apenas financeira nesta época, mas ler determinadas obras era um ato subversivo. Hitler, na Alemanha Nazista, fez a grande queima de livros. Esses artigos tão poderosos sempre assustaram os governos autoritários e aqui, apesar de não haver uma grande queima, houve um ataque às artes e, claro, à literatura durante a ditadura iniciada na década de 60 do século passado. Logo, durante os anos de chumbo, fechar os olhos para leitura e se afastar dos livros foi algo que os brasileiros fizeram. Não era um entrave econômico, mas um impedimento político.

Ao longo do final do século XX, principalmente, vislumbramos que as políticas públicas voltadas ao incentivo à leitura, foram capazes de levar a literatura negada a parte da população. As bibliotecas públicas e escolares mostraram-se de grande valia no fomento ao hábito da leitura, bem como os Planos municipais, estaduais, federais de leitura, literatura e bibliotecas públicas que, no início deste século, vem ganhando mais destaque.

Nossa constituição, em seu artigo 150, que trata sobre tributação, aborda a questão de isenções e afirma que: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI –  instituir impostos sobre: (…) d)  livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.” Sendo assim, é constitucional a não tributação dos livros, o que o torna mais acessível e o fomento à leitura mais eficaz.

Neste ano, no entanto, o atual ministro da economia, Paulo Guedes, afirmou que livros são para as elites. Somente esta frase poderia colocar em xeque a sentença: “Brasileiro não gosta de ler”. Afinal, existe um pensamento retrógrado, mas ainda vigente, de que os livros não são para todos. Podemos nos indagar se o brasileiro não gosta mesmo de ler ou se ele tem pouco acesso à leitura?

Claro que a frase do ministro não foi dita fora de contexto. Estava essa envolvida na reforma tributária, na qual, observando de sua “Torre de Marfim” e concordando com o senso-comum de que não há uma apreciação da leitura por parte dos brasileiros, o governo decidiu que esta reforma deverá tributar em 12% os livros. Em resumo: os livros ficarão mais caros e, portanto, menos acessíveis.

O Brasil entraria para um seleto grupo da América Latina, juntando-se à Guatemala e ao Chile: únicos países dessa região a tributar um bem cultural como o livro. Não é um “clubinho” do qual devemos ter orgulho de fazer parte, afinal, os índices educacionais da Guatemala e do Chile não estão entre os melhores da América Latina e sabemos bem que a cartilha de Pinochet, seguida pelo ministro ultra-liberal Paulo Guedes, é uma fórmula fadada ao fracasso, basta observarmos a atual situação chilena.

A Reforma tributária é de fato necessária e urgente, no entanto não é a tributação dos livros que encherá nossos cofres. Onerar o mercado livreiro, afastará o brasileiro da leitura, acabará com pequenas editoras, desanimará jovens talentos brasileiros a despontarem na literatura. Os cofres não ficarão cheios, mas as prateleiras de livros, principalmente dos mais pobres, ficarão vazias.

“O brasileiro não gosta de ler”, é uma frase fácil de dizer, mas gostaria de sugerir para ela uma substituta mais longa, porém mais justa: “O brasileiro gostaria de ler, se tivesse oportunidade.”

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