ANTES DE HUXLEY 21 de outubro, 2020

Por Jean Pierre Chauvin

“Porque a linha do Estado Único é a reta” (Nós, p. 17)

D-503, protagonista do romance Nós (1924), está convencido de que é pleno e coerente, útil e feliz. Nas breves “Anotações” que escreve, elogia a reta como símbolo do racionalismo e do equilíbrio; considera-se digno por ter uma meta, qual seja, colaborar na construção da “Integral”. Ele parece igualmente satisfeito em coabitar células-padrão e dispor de passes que permitem ter relações sexuais com parceiras variadas, em dias previamente autorizados pelo Estado Único. 

Negativando a liberdade em seu mundo plano e previsível, que é high tech mas limítrofe, esse sujeito óbvio, ordeiro e sistemático é incapaz de conceber outro modo de vida, provavelmente porque lhe faltem parâmetros que permitam comparar realidades e perspectivas de sensibilidade e pensamento.  Essa apologia ao número, publicada por Zamiátin em 1924, é governada pela restrita lógica formal. Só uma coisa poderá deslocar a personagem de sua trajetória retilínea, cronometrada e sem imprevistos: a relativa (des)ordem dos afetos. 

Como dizia, D-503 tem vida social. O-90 é uma parceira subserviente, ideal para o pragmatismo dos encontros mecânicos. Já I-330 representa o risco da desestabilização, do desequilíbrio, do apego irracional: “Essa mulher me afetava da mesma maneira que um termo irracional e irredutível que se intromete ao acaso numa equação”. A mulher de formas arredondadas, fisicamente associada à letra e número, contrasta com a mulher de formas longilíneas, em forma de “I”.

Várias passagens do romance poderiam servir como alerta a uma população, digamos a brasileira (96 anos depois), que continua a dar crédito a mitômanos cercados por hipócritas convertidos em ministros rasos e oportunistas, convocados de última hora a usufruir das benesses do governo: “O Benfeitor, a Máquina, o Cubo, o Sino de Gás, os Guardiões, tudo isso é bom, tudo isso é majestoso, perfeito, nobre, elevado, de uma pureza cristalina. Porque isso protege a nossa falta de liberdade, isto é, a nossa felicidade”.

Na resenha que George Orwell escreveu sobre Nós em 1946, ele sugeria que Aldous Huxley teria se inspirado muito no escritor soviético, ao escrever Admirável Mundo Novo (1932). Também não seria difícil ver em I-330 os contornos de Júlia, a futura parceira de Winston Smith, em 1984. Nem falta um dispositivo que antecipa a telelela orwelliana, em Zamiátin referida como fonolector: “Soa a campainha. Levantamos, cantamos o Hino do Estado Único. No palco, o fonolector resplandeceu espirituoso com seu alto-falante dourado”. 

Evidentemente, há maior coerência no Estado Único e relativamente igualitário de Zamiátin, que no estado-capacho em que campeiam mentiras, hipocrisias, desigualdades e mortes, cunhado Brasil.  Está feito o convite.

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