NA CAMA COM A GRAMÁTICA: METAFORIZANDO TEMPOS NA ESCRITA 30 de outubro, 2020

Por Sabine Mendes Moura

O banho é demorado – espuma de sabonete líquido escorrendo por seu corpo, músculos distensionando em contato com a água, uma luz suave (de velas, por que não?) projetando sombras poéticas nos ladrilhos, antes frios e sem graça… A roupa íntima de seda acaricia sua pele, lençóis novos perfumam a cama e você se prepara para uma reconfortante noite de sono em companhia Dela. Sim, Ela. Aquela-que-não-pode-ser-nomeada. Aquela que, luz de sua vida de escritor, está presente a cada gesto, a cada escolha criativa, a cada movimento de inscrição de sua mente na tela ou no papel: a Gramática.

Ei, ei, ei… Muita hora nessa calma! Para tudo se não é essa a imagem de parceira que te veio à mente… Eu sei que nem sempre nossos encontros com essa Diva Textual Mór sugerem enlaces tão glamourosos. Mas foi justamente essa percepção um pouco distorcida do que a gramática é ou pode ser na vida de um escritor que me inspirou a escrever esse texto. Sempre fico um pouco indignada com a noção de que gramática é algo que se revisa, como se fosse independente, depois que o texto está pronto. Ou com trabalhos em que me pedem para “dar uma olhada na norma culta” como se fosse possível separá-la da construção de significados. Por isso, comecei a pensar sobre como seria esse nível de intimidade em que um escritor conseguiria ver o que eu, escritora e analista do discurso, vejo: que a gramática é tão parte do kit de ferramentas de que dispomos para escrever quanto os elementos narrativos, as estruturas míticas, etc.

Comecemos, então, com tempos verbais. Sei que, provavelmente, sua mente viajou rumo a tabelas de conjugação em um quadro negro repetidas à exaustão. Na escola, além de decorar desinências e suas variações, eu precisava saber os nomes de tempos e modos, mesmo que não fizessem sentido algum para mim. A título de reparação histórica, devo dizer que há, efetivamente, uma lógica para aqueles nomes. Já parou para pensar, por exemplo, que o pretérito perfeito é mesmo “perfeito”, porque se refere ao passado “como um todo”; que o “imperfeito” se refere a apenas uma parte do passado e o “mais que perfeito” a algo que ocorreu antes do perfeito? Mas, ok, ok, não quero assustar ninguém…

O fato é Harald Weinrich, um filólogo alemão muito simpático (procurem a foto na net), já escrevia, desde a década de 60, sobre uma forma completamente diferente de entender os tempos verbais. Não só diferente como, a meu ver, muito mais útil para nós, escritores. Em sua visão, os tempos teriam a função de sinalizar a situação comunicativa em que se inscrevem aqueles que enunciam algo. Uma coisa interessante a se dizer sobre tempos verbais é que eles não estão diretamente relacionados com Chronos, nosso tempo cronológico. Na vida, poderíamos dizer que todo pretérito é perfeito: não dá para voltar ao passado (Stephen Hawking confirma!). Porém, no discurso, é possível criar um flashback: “Tinha acabado de entrar em casa, quando ela gritou meu nome”. Voltei a fita para me mostrar entrando, não foi? Mas aquelas conjugações copiadas do quadro não nos ajudam a perceber isso. Para Weinrich, tempos verbais eram mais que passado, presente e futuro dispostos, assim, linearmente. Tentando enfatizar isso, dividiu os principais tempos em dois “mundos”: o mundo narrado e o mundo comentado. Para ele, essas eram as duas motivações comunicativas básicas de toda enunciação humana. Ingedore Villaça Koch, uma linguista brasileira não menos simpática, desenvolveu várias análises a partir dessa ideia de mundos.

Quando comentamos, segundo ela, comprometemo-nos com o que estamos dizendo e, para isso, usamos, basicamente o presente e o futuro (bem como suas locuções verbais). Já quando narramos, usamos, basicamente, os tempos do pretérito e a nossa atitude já não é de compromisso, mas de distanciamento. Algo como: “só sei que foi assim”. Ora, quem conta uma história, conta como se aquilo tivesse acontecido mesmo, certo? Tudo bem que todo mundo sabe que a mesma história na boca de pessoas diferentes pode mudar completamente. Mas não dá no mesmo usar presente/futuro ou pretérito para comunicar. Se eu digo: “Eu gosto do PT”, estou me comprometendo, né? Você vai responder (nem que seja mentalmente). Mas se eu digo “Eu gostei do PT”, dei início a uma história e você tende a ficar esperando a continuação para ver onde vai dar.

E é aí que a coisa fica interessante mesmo: quando pensamos na reação que a entrada nos mundos comentado e narrado causa. Se escolhemos comentar, é como se nossos ouvintes/leitores recebessem um sinal de alerta de que aquilo que está sendo dito tem a ver com eles e de que o discurso exige a sua resposta, verbal ou não verbal. Se escolhemos narrar, como nós nos colocamos distanciados, quem nos ouve/lê também costuma se colocar assim e as portas do relato (literário ou não) se abrem. Imagino que alguns de vocês estejam pensando: “Ah, mas em tempos de coxinhas e petralhas, esse seu exemplo é meio viciado!”. Ok, mas pensem em uma frase inofensiva. Se eu digo “Eu gosto de chocolate”, parece haver uma tendência por parte de quem me ouve em dizer ou pensar “Eu também”, “Eu não”, “Quem não gosta?”, etc. Mas se eu disser “Eu gostei de chocolate”… Senta que lá vem um caso…

É claro que cada mundo tem suas particularidades… No mundo narrado, por exemplo, há um recurso muito interessante chamado relevo que é o responsável por Renato Russo ter conseguido contar a história de Eduardo e Mônica incluindo o ponto de vista das duas personagens sem que nós nos perdessemos. Eu explico: lembra que o pretérito perfeito se refere ao passado como um todo e o imperfeito a um ponto ou trecho do passado? Então, acontece que, quando você usa os dois em conjunto, é como se criasse planos no seu texto. Em primeiro plano, fica o que está no perfeito e, em segundo plano, como cenário, o que está no imperfeito. Assim, “Eduardo abriu os olhos, mas não quis se levantar. Ficou deitado e viu que horas eram. Enquanto Mônica tomava um conhaque noutro canto da cidade…”: Eduardo em primeiro plano e Mônica sentadinha lá, em segundo, enchendo a cara. Mas, na sequência, “Mônica riu, e quis saber um pouco mais sobre o boyzinho que tentava impressionar…”: Mônica em primeiro plano e Eduardo fazendo sabe-se lá o quê para chamar sua atenção (meio tonto, diga-se de passagem). Não sei se Renato sabia disso, mas, sem esse recurso, não rolaria… Notem que “Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração?” já traz o futuro, o mundo comentado, e, com ele, a moral da história, a parte que requer de você, ouvinte, uma resposta, uma identificação.

Ok, então. Basta prestar atenção nesses mundos e teremos uma ferramenta poderosa no que diz respeito à construção da unidade dramática, certo? Mais ou menos. Porque, é claro que, como somos muito criativos, nós brincamos com essa história de comentar e narrar o tempo todo. Na verdade, há momentos em que usamos esses mundos de forma metafórica, como se um mundo invadisse o outro. Parece complexo, mas juro que não é. Pense em uma narração de jogo de futebol. “Juan tem a posse de bola, desvia, chuta, cabeceia…” Ok, eu não gosto muito de futebol, mas o ponto é que isso é uma narração, certo? Já aconteceu, né? Então, por que está no presente? Metáfora, minha gente. Pense no senhor que ainda acompanha no radinho à pilha (ainda deve existir esse senhor, não?). O narrador quer que ele se sinta lá, em campo, sinta o cheiro do suor do jogador, sinta que não está perdendo nada. E as manchetes de jornal? “Câmara aprova aumento de 10% para professores” (vai sonhando, Sabine!). É passado, não? Mas se for passado não vende… Metáforas, invasões do mundo comentado no mundo narrado querendo que você responda, querendo que você reaja.

Clarice também fazia isso na literatura e muito bem, por sinal, como já diziam as pesquisadoras Aline Santos e Maria D’Ajuda Ribeiro. Em seu conto “O Jantar”, há trechos de pura invasão metafórica como: “Eu já ia cortar a carne de novo, quando o vi parar inteiramente. E exatamente como se não suportasse mais – o quê? – pega rápido no guardanapo e comprime as órbitas dos olhos com as mãos cabeludas”. Pega e comprime no presente, meu povo. Atiçando a gente, exigindo uma resposta, adicionando drama à coisa toda…

É claro que o contrário também é possível. Em textos jornalísticos, há muitas opiniões, muitos comentários que ganham ares de fato narrado só porque estão no passado e o pior é que nem sempre dá para perceber. Por exemplo, vejam esse trechinho de texto publicado no Jornal do Brasil e analisado por Lúcia Helena Gouveia: “No ano passado, o acordo com o FMI, nas condições obtidas, significou grande vitória do recém-eleito presidente Lula. As exigências nada tiveram de anormais e o próprio governo tratou de fixar alto padrão de superávit fiscal” (Blindagem Útil. Jornal do Brasil, 28/09/03). Esse significou aí é bem relativo, não? Significou para quem? Não é opinião/comentário do colunista? E o que foi considerado como normal ou anormal? Até o tratar, que parece mais suave, pode ser questionado. Mas se ficarmos no significar, apenas, a tendência, seguindo a lógica dos mundos, é que quem lê se esqueça de que essa é uma opinião e entenda como um relato acerca do que ocorreu durante a realização do acordo. Concordam? Metáfora, minha gente: invasão do mundo narrado no que era comentário. A meu ver, isso dá uma força danada para a argumentação, não?

E como seria o primeiro parágrafo desse meu texto aqui se estivesse no pretérito? Não teria a mesma força, penso eu. Enfim, acho que essa visão sobre os tempos verbais ajuda à beça, mas, é claro, simplifiquei um monte de coisas aqui (para quem quiser saber mais, deixo as referências). Fato é que, se você escreve (e fala, e se comunica) já usa vários desses recursos no dia a dia. O interessante é juntar o que sabemos sobre tempo cronológico e psicológico com o que sabemos sobre tempos verbais (nem sei porque separamos para início de conversa), deixando essa brincadeira de narrar e comentar cada vez mais divertida.

Referências:

GOUVÊIA, Lúcia Helena Martins. Função dos Tempos Verbais. In: Anais do VIII Congresso Nacional de Linguística e Filologia. Disponível em: http://www.filologia.org.br/viiicnlf/anais/caderno14-09.html

KOCH, Ingedore Villaça. Argumentação e linguagem. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1993.

––––––. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1997.

SANTOS, Aline Maria dos e RIBEIRO, Maria D’Ajuda Alomba. Metáfora Temporal no mundo narrado: função sociocomunicativa dos verbos. In: Inventário, n.8, UFBA. Disponível em: http://www.inventario.ufba.br/08/Met%C3%A1fora%20temporal%20corrigido.pdf

WEINRICH, Harald. Estructura y función de los tiempos en el lenguaje. Madrid: Gredos, 1968.

A PRIMEIRA VERSÃO DESTE TEXTO FOI PUBLICADA PELA REVISTA VIRTUAL NINHADA (2016), COMO PARTE DO PROJETO DE ESCRITA COLABORATIVA DE MESMO NOME, PREMIADO PELO PROAC/SP.

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