ANTES DE O GÓTICO SUBURBANO 14 de abril, 2020

De certa forma, essa área periférica e complexa conhecida como subúrbio sempre esteve presente nas histórias que eu contava. Minhas primeiras publicações tinham elementos bem típicos do subúrbio carioca: o trailer de praça, que serve aquele hambúrguer monstruoso que chamamos de “podrão” aqui no Rio; moradores queimando lixo em terrenos baldios; vizinhos colocando cadeiras de praia na calçada para conversar e fugir do calor; obras em casa realizadas com a ajuda de amigos no estilo “faça você mesmo” e que acabavam em churrasco, e por aí vai, mas eram elementos apenas. Eles faziam parte do cenário, davam um toque mais regional à história contada, mas basicamente era isso. Com o Gótico Suburbano, eu tentei ir um pouco além, queria tornar o próprio subúrbio carioca um personagem nas histórias assustadoras que eu queria contar.

Sobre Trens e Companheiros de Viagem

Achei que a melhor maneira de começar seria por uma história ambientada no trem. Uma das definições dadas ao subúrbio carioca é a de bairros que cresceram ao redor da estrada de ferro. Apesar de não ser uma regra, e existirem bairros que não são atendidos pelos trens, no imaginário coletivo as palavras “subúrbio” e “ferroviário” formam uma coisa só. Claro que o subúrbio vai muito além disso mas, mesmo assim, como já diz aquele velhinho deitado: qualquer começo é um bom começo.

Quem usa os trens da Central do Brasil nos horários de pico está acostumado a ver vagões cheios, lutar para conseguir entrar ou sair do vagão, desviar de cotoveladas e esbarrões e por aí vai. Um vagão vazio no horário do rush causa estranheza e, mesmo fora dos horários de maior movimento, um vagão praticamente vazio não é regra. Por claras questões de segurança, as pessoas costumam optar por aqueles com mais pessoas. Eu particularmente nunca estive em um vagão completamente vazio, mas… e se pegasse? A partir daí, foi só juntar uma coisa boa (um vagão de trem com lugares de sobra) e uma coisa não tão boa assim.

A pipa que pendia no beiral

Apesar de não ser um brinquedo (ou uma brincadeira) exclusivo dos subúrbios cariocas, a pipa é um dos seus cartões de visita. Moradores de outros lugares a conhecem como curicica, cangula, casqueta, cambeta, morcego, lebreque, coruja, barrilete, pandorga, cafifa, gaivota, etc.

Nesse conto, usei um elemento bem conhecido na literatura de terror, e que pode ser considerado como um clichê batido ou um clássico: o do sujeito desavisado que entra, justamente, na casa onde coisas estranhas acontecem. Para deixar a coisa mais interessante, juntei a isso uma pipa, esse objeto que encanta crianças e marmanjos.

Simpatia para descobrir marido infiel

Essa história surgiu de uma conversa que ouvi na fila do mercado entre duas mulheres. Apesar de não ser bem essa a simpatia ensinada, achei interessante uma das mulheres que, apesar de dizer que não acreditava em simpatias, confirmou vários pontos com a amiga.

Quis mostrar a ideia de como um ritual macabro e antigo poderia se transformar em algo banal, até desacreditado. Hoje em dia conheço poucas pessoas que fazem simpatias. Não posso dizer se o costume diminuiu ou se as pessoas têm mais reservas em expor isso.

A simpatia daqui foi inventada, mas não aconselho ninguém a tentar. Velas são perigosas; coisas que aparecem no espelho do banheiro quando a casa está escura também são.

Cachorro Pai

Durante alguns meses de 2016, no bairro onde moro, uma matilha de cães andava pra lá e pra cá. De uma semana para outra, os cachorros sumiram quase que por encanto. Até onde eu sei, ninguém foi mordido, mas a imaginação trabalha… E como trabalha!

Além disso, queria fazer algo que se relacionasse com as situações de vulnerabilidade das pessoas que, por vários motivos, acabam tendo a rua como moradia.

Bate-Bolas Fora de Época

Muitas pessoas me contaram sobre como a figura estranha do Bate-Bolas, o palhaço das ruas, aterrorizava seus carnavais na época de infância. Isso sem contar os adultos que, até hoje, durante os festejos, mudam de lado na calçada para não cruzarem o caminho de um bate-bola.

A ideia da história veio de uma cena na estação de São Cristóvão, em que uma mãe entrou no trem com dois filhos. Ela brigava com alguém ao telefone. Cedi o lugar para ela sentar e notei que o garoto tinha uma máscara, tipo a do Zorro, pendurada no pescoço. Não era uma máscara de bate-bolas, mas a imaginação sempre encontra o seu caminho.

Madame Zaíra Aconselha

Será que existe alguém que anda pelas ruas da cidade e nunca recebeu um daqueles papeizinhos com propaganda de videntes ou de compra de ouro? Existem bairros na Zona Norte cuja oferta é tão grande quanto a variedade de rituais utilizados. A ideia basicamente veio disso: quantas tentativas seriam necessárias para que alguém encontrasse as respostas pelas quais procura?

Curiosidade entre Vizinhos

O Cemitério de Deodoro – ou de Ricardo de Albuquerque — fica no meu caminho regular para o trabalho. Toda vez que passo por lá, seja de manhã ou de tarde, dezenas de histórias brotam na minha cabeça. Essa aqui é uma delas.

A teoria levantada sobre a qualidade dos ovos não é minha, é só mais uma pérola que recolhi por aí. A infestação de ratazanas é fictícia. Então, se você mora perto desse cemitério ou nas redondezas, pode ficar tranquilo. Pelo menos com relação às ratazanas. Com relação aos outros inquilinos que querem sair das covas, não posso dizer nada.

Papo de Bar

Nesse conto aqui temos dois elementos que são mais assustadores do que qualquer situação ou monstro que eu poderia criar: as enchentes e o abandono de pessoas idosas.

Não passa um ano sem que a cidade tenha problemas sérios causados pelas chuvas. A área onde a narrativa se passa já sofreu muito com alagamentos. Espero que o acontecimento dessa história um dia esteja desatualizado.

Copo Quebrado

Quando um copo se quebra, isso é bom ou ruim?

De uma maneira prática, é ruim por vários motivos: os cacos de vidro no chão são uma ameaça, é menos um copo no jogo, e alguém vai ter que limpar aquela porcaria. Tirando, no entanto, essas questões de ordem prática, e as outras implicações?

Conhecia uma ou duas histórias sobre vidros e espíritos e, enquanto pesquisava para o conto, descobri algumas matérias sobre a grande quantidade de rezadeiras que existiam nos subúrbios cariocas, especialmente nas décadas de 70 e 80. Essas pessoas, além de receitarem chás e infusões de plantas medicinais para qualquer tipo de problema, físico ou espiritual, também faziam previsões e davam conselhos, ou seja, eram autoridades em vários níveis, procuradas e respeitadas pela comunidade.

Conversa ouvida em uma barbearia

O último conto é ambientado em uma barbearia, um bom lugar para saber das novidades da vizinhança. Nele, um senhor idoso relembra para os presentes um encontro que teve com o “coisa-ruim” em um trem quando era jovem. Eu já ouvi algumas histórias curiosas em barbearias mas, infelizmente, nenhuma assustadora nem bizarra. Essa é a forma de contar a história que eu queria ter escutado enquanto esperava pelo corte do meu cabelo.

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