O FANTASISMO A TODO VAPOR 27 de novembro, 2020
Professora Doutora é escritora Simone Paulino
Ainda parece um pouco confuso definir o que vem a ser Fantasismo. Esse termo que ganhou destaque após o livro Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao Fantasismo (2018), tenta, nas poucas páginas finais propor um movimento centrado em narrativas insólitas brasileiras. Os autores do livro, Bruno Anselmi Matangrano e Enéias Tavares fazem uma compilação do fantástico, para, no fim, “apresentar” o Fantasismo.
Existem autores contemporâneos que não só se filiam a esse movimento, mas figuram como possíveis signatários do Manifesto Fantasista (o qual, por enquanto, só ouvimos falar). Escritores da cena atual como Carol Chiovatto, Felipe Castilho, Eric Novello, Jana Bianchi e, claro, Enéias Tavares, estão entre esses.
Mas afinal, o que é o Fantasismo? Como eu disse no começo deste artigo, essa definição ainda é confusa, pois é atravessada por várias discussões do cenário literário como o fantástico, o insólito, a ficção especulativa, a literatura de gênero. Os limites são tênues, ainda mais tendo em vista que os idealizadores do termo “Fantasismo” estão muito próximos do grupo de pesquisa da UERJ denominada Vertentes do Insólito ficcional que tem como um dos principais organizadores o professor Flavio Garcia. Este mesmo professor foi responsável pelo prefácio do livro de Matangrano e Tavares o que nos leva a questionar qual a diferença do Fantasismo para o insólito? O Fantasismo está dentro do insólito? Ou seria o Fantasimo um braço do insólito?
Infelizmente não tenho resposta para nenhuma dessas questões. No entanto, vamos parar por um instante e refletir sobre todos esses conceitos que se misturam ao Fantasismo. Uma das autoras que está com a caneta em punho para assinar o manifesto Fantasista é a Jana Bianchi, autora da novela Lobo de Rua (que recomendo!). Porém, ao ler a obra, para mim, vi aquilo como uma fantasia urbana. O termo Fantasismo ainda não tinha aparecido para misturar tudo numa mesma caixa: desde o horror até a fantasia. Em verdade, parafraseando livremente o professor responsável pelo prefácio do livro de Matangrano e Tavares, o insólito é aquilo que é pouco usual, que foge do cotidiano e contraria as regras, são incomuns e contrariam o senso comum (GARCIA, 2012). E por outro lado, o que seria o Fantasismo? Segundo os autores, através do Twitter e em entrevistas fornecidas em podcasts (como o Curta Ficção), o Fantasismo não é uma estética, um modelo, trata-se de um movimento semelhante ao que ocorreu em 1922 com os Modernistas que, num processo de ruptura, aderiram às vanguardas europeias na chamada Semana de Arte Moderna.
Então, basta que um autor se reconheça como fantasista para fazer parte do clube. Simples assim? Acredito que não, afinal, temos que considerar que o movimento Fantasista está ligado ao fantástico e ao insólito. Então, tenhamos bom senso. Além disso, há outros fatores do movimento que me instigam e falarei deles mais adiante.
Eu mesma já me peguei olhando para meus textos e me questionando se sou fantasista. Sempre me defini como autora de literatura especulativa ou insólita. Então, o que eu sou? Calma, caro leitor, não serei fisgada por essa crise existencial no meio desse artigo.
O fato é que sempre vi no termo “insólito” uma expressão guarda-chuva para abarcar tudo o que fugisse ao verossímil, ao normal. Sendo assim, esse termo, com o qual sinto-me mais confortável, abarcaria todos os tipos de fantástico lecionados por Todorov em Introdução à literatura fantástica, cabendo ali o fantástico puro, o fantástico estranho, o fantástico maravilhoso, além do horror, terror, fantasia. Então onde está o Fantasismo? Ele está dentro do insólito ou ele busca ser um novíssimo termo guarda-chuva para abarcar as narrativas especulativas? Ou seria o Fantasismo um “clube” para escritores brasileiros que procuram, através de um movimento, mostrar a produção da narrativa insólita no Brasil?
Enéias Tavares, um dos autores do livro Fantástico Brasileiro: o insólito literário do romantismo ao Fantasismo (2018) é autor da primeira série steampunk brasileira que, atualmente, está disponível no Prime.
A série, chamada A todo vapor, conta com poucos capítulos, tem uma premissa instigante, apresentando um assassino que mata utilizando os “arquétipos” dos arcanos maiores do Tarô de Marselha. Coloco o termo arquétipo entre aspas, pois, quem estuda um pouco desse baralho, sabe que não basta a posição em que as imagens aparecem nas cartas, mas há toda uma simbologia que necessita ser considerada para interpretar e representar a carta e isso foi deixado de lado na escolha das vítimas e na construção das cenas dos crimes.
É louvável buscar sair do senso comum e criar uma série steampunk ambientada no Brasil, ainda que seja num lugar fictício, a Vila dos Astrônomos. O autor, numa espécie de homenagem, resgatou na literatura brasileira canônica personagens emblemáticos, por isso vemos Capitu, Juca Pirama, Leonardo Pataca, Aurélia Camargo que, assim como os “arquétipos” dos arcanos maiores do tarô levam muito pouco ou absolutamente nada das personagens originárias.
A homenagem à literatura brasileira, no entanto, não fez diferença na trama. Capitu poderia se chamar Ana e Juca Pirama, João e isso não mudaria em nada o desenrolar da trama. Na verdade, até me deixaria um pouco mais confortável que o Juca Pirama desta série fosse o detetive “João-Qualquer”, pois apagar a origem indígena de um personagem do romantismo brasileiro, ao meu ver, mostrou-se um apagamento da representatividade dos povos originários do nosso país.
E por falar em representatividade, isso é algo que não parece existir na série. Sim, temos Capitu como uma mulher inteligente, sagaz, girl power total. Porém é sofrível ver um personagem de Gonçalves Dias despido de sua origem indígena, sendo interpretado por um homem branco. Os que assistiram à série podem argumentar “Mas tem uma mulher indígena” Ela só é assim considerada, pois é desta forma que ela é apresentada aos telespectadores, mas observem direitinho e depois me respondam se aquela atriz branca realmente se tornou parte dos povos originários brasileiros porque se “fantasiou” de índio.
Claro, também me incomodou algumas coisas relativas a símbolos mágicos, como o Triskle utilizado na seita. Sem dar spoilers, quem tiver curiosidade de assistir à série verá esse símbolo como a representação de algo maligno. Peço mais respeito e mais pesquisa. O Triskle era usado pelos celtas muitas vezes como forma de invocação da deusa tríplice. Essa informação é acessível em uma simples busca no Google.
Deixo para o final o meu maior incomodo da série, retornando à questão da representatividade: Na Vila dos Astrônomos não há negros? Houve um processo eugenista pesado ali que exterminou todos que não fossem brancos? A escravidão é citada, na conversa entre brancos, já que na série, como eu já disse, não temos negros. Mas isso é o suficiente para falarmos que houve representatividade? Sinceramente, não.
Eu, como mulher negra e escritora de narrativas insólitas, olho ressabiada para o Fantasismo quando observo essa série que está intimamente ligada a esse movimento literário. Pergunto-me o quão abrangente esse movimento se propõe a ser e o quanto ele está disposto a abarcar narrativas especulativas que saiam do eixo Sul-Sudeste, que sejam escritas por LGBTQ+, por mulheres e por negros? Como já disseram os autores que cunharam o termo, basta se declarar Fantasista para sê-lo, mas esses que são dissidentes e não se encaixam no “padrão” branco, sulista, hétero, cis, será aceito entre seus pares do movimento?
No momento observo o Fantasismo com muitas dúvidas e inquietações sobre os caminhos da escrita especulativa no Brasil. Olho para a trilha desses escritores e dos fundadores desse novo conceito literário e espero, com sinceridade, que esse seja um movimento realmente abrangente e receptivo, não só para as diversas vertentes da narrativa insólita, mas também para os escritores e leitores desse tipo de literatura.
Será que um dia me declararei uma escritora Fantasista?